Capitulo 6

Quando acordei no dia seguinte estava ainda no sofá com uma manta enrolada á minha volta. Demorei algum tempo para recordar o dia anterior, até que a memória de Artur ressaltou na minha cabeça, levando-me a corar um pouco.

Olhei á volta mas não o vi em parte alguma. Não estava lá.

“Provavelmente está na casa de banho, ou assim” – pensei. Espreguicei-me com vontade.

Quantas horas seguidas teria dormido? Já estranhava a sensação de pleno descanso ao acordar. Senti-me disperta e bem disposta.

Os cadernos e livros ainda se encontravam em cima da mesa, mas só os meus. Reparei numa folha dobrada em quatro, arrancada do meu caderno. Peguei nela com a ponta dos dedos, voltando a estender-me no sofá para a ler.

Tive mesmo que sair. Subi ao teu quarto para arranjar essa manta, e tambem me servi na cozinha, espero que não haja problema. Gostava que pudessemos falar mais.”

Li novamente o papel. Depois virei-o para confirmar. Ele não tinha deixado número de telefone. Teria que esperar pelas aulas para o ver outra vez. Sentia-me envergonhada só de pensar em vê-lo nas aulas depois daquilo. Queria que ele ali estivesse. Queria poder falar com ele agora.

Sentindo que a boa disposição de dissipava um pouco, levantei-me do sofá já com um certo peso nos musculos sentindo-os rigidos, principalmente os da cara.

Teria sido tão mais facil se o encontrasse ali, agora. Que lhe diria eu na escola, depois de lhe ter adormecido em cima, sem razão aparente? Conseguiria eu, superar as figuras de débil mental, que fazia sempre que estava com ele?

“Provavelmente não.”

Dirigi-me para a cozinha, arrumei a loiça na maquina e passei um pano pelas bancadas. A mãe devia estar a chegar.

Reparei num ou outro vestigio da estadia dele, enquanto limpava a cozinha.

Olhava sem cessar para o telemóvel. Mas para quê? Ele não poderia ligar-me, não tinha o meu número. Nem se dava com ninguém relativamente próximo a mim para o arranjar.

As restrições com o número de telemóvel, quando se é popular numa cidade pequena, traziam bastantes dores de cabeça. Eu e Susana já nos viramos várias vezes obrigadas a mudar de número de telefone.

Por vezes, apenas admiradores secretos, provavelmente acabados de sair das fraldas. Alguns não passavam de murmurios ofegantes enquanto a ligação de mantinha. Em dias de boa disposição, Susana e eu entretinhamo-nos a picar quem estivese do outro lado, lançando tambem gemidos, e propostas provocadoras. Outras vezes porém decidiamos humilhar quem estivesse do outro lado, com todo o tipo de esteriótipos a cromos espinhudos de óculos e gordos, que nos pudessemos lembrar.

Outras vezes ligavam raparigas a insultarnos. Aí desligava-mos logo.

No entanto, ao longo do tempo, as partidas ao telefone foram perdendo a piada, o que me levou a mim e a Susana, a restringir o novo número ao minimo de pessoas que fosse possivel.

Pensei com saudades das risotas em cima da cama, ambas agarradas ao telemóvel, em alta voz. Mas teria agora a mesma piada fazer o mesmo? Provavelmente não.

Girei o telemóvel na bancada com alguma tristeza, sabendo que mesmo que quissesse não poderia contactar Artur. Se tivesse o número será que o contactaria?

“Claro que não, mas esse não era o ponto importante. Ele não tinha deixado o número e pronto. Não sentia pressa em falar comigo. Esperaria de bom grado até me ver na escola.”

Tentei não pensar nisso. Decidi telefonar a Susana, convidando-a para passar a tarde comigo. Pelo menos teria companhia.

Susana chegou a meio da tarde, tocando apressadamente á campainha, e batendo também na porta, com a pressa de ser resgatada do frio que se fazia sentir. Trazia uma galochas cor de rosa, com forro térmico. Usava uma gabardine branca com grandes bolas rosa, que embora a protegesse da chuva, não devia ser suficiente para a proteger do frio.

Entrou rapidamente em casa, sentando-se no sofá da sala cobrindo-se com a manta que eu deixara ficar. Franzi o nariz, imaginando o cheiro do seu perfume a ficar empregnado na manta mas não disse nada. Sem a cumprimentar, sentei-me também no sofá, roendo as unhas, ainda com a imagem de Artur a ocupar o lugar onde esta estava agora.

– O Ricardo voltou a ligar-te? – perguntou-me Susana finalmente falando, já recomposta do frio.

Ricardo? Seria só a mim que a briga com Ricardo e a noite do baile, pareciam ser um assunto, encerrado á séculos?

– Não. Nem acho que volte a ligar.

– Acho que volta. O Dani ia falar com ele.

Revirei os olhos, num gesto de impaciencia.

– Diz-lhe que não presisa de fazer isso. O Ricardo quando quiser volta a falar comigo. E eu se quiser falo com ele.

– O Dani é que quer falar com ele, tambem não tenho nada a ver com isso.

– É indiferente. – tentei por fim ao assunto. – Tenho uma coisa para te contar.

O quê? – Susana olhou-me com curiosidade. Adorava criar espectativa sempre que lhe contava algo.

– Ontem estive a acabar um trabalho aqui em casa com uma pessoa.

Susana abria mais os olhos, como se pudesse ver mais promenores com o olhar. – Com quem?

– Acho que não conheces. Chamasse Artur, anda sempre com aquele grupo que nós, bem que nós…

– Do grupo dos drogaditos? – Susana mostrou-se desagradada.

– Não lhe chames isso. Não conhecemos ninguem de lá.

– Drogados, asquerosos, sem estilo, se preferires então. Sem a menor aptidão social.

Ri-me. O que sabia Susana acerca de aptidões sociais? Pareceu-me uma palavra muito forte para ela.

– Bem, mas de qualquer maneira, Artur está a fazer um trabalho comigo para psicologia. É muito inteligente. Posso quase de certeza dizer que ele tem.. Como é? Aptidões sociais – Ri-me.

– Não podes estar a falar a serio. Fizeste alguma coisa com ele?

– Passou cá a noite.

Susana parecia perplexa. – Mas não fizemos nada mesmo, nada a ver. Mas, gostei de estar com ele.

– Não podes mesmo estar a por a hipótese de deixar o Ricardo por aquilo…

– O Ricardo é que me deixou a mim. E não fales assim, não o conheces.

– Mas esse rapaz, não é como nós. O que poderias ter tu em comum com ele?

– Muito. Ele não é como nós como? Só porque não tem dinheiro?

– Sabes o que quero dizer. Isso é gente de grupos pesados. Não falam do mesmo que nós, nem têm as mesmas perspectivas que nós.

Ponderei um pouco aquilo que Susana me dizia. Mas a verdade é que, também eu não sabia quais eram ao certo as minhas perpectivas.

– Estás a generalizar. Não o conheces. E apenas te estou a dizer que gostei de o conhecer. Não que vou andar com ele.

– Mas ele já passou cá a noite…

– Bem demoramo-nos a fazer o trabalho e adormecemos a ver televisão – disse. Não queria dar a Susana mais promenores. Ainda me sentia envergonhada da carga emocional da noite passada. E Susana também não sabia as minhas razões por isso não valia a pena contar-lhe essa parte.

– Acho que se saires com ele, vais acabar magoada – disse por fim.

– Como tu com o Dani?

– Bem para ser sincera eu sem bem no que me estou a meter. Não estou a procura de um relacionamento com ele. Enquanto durar, vai-se andando. Provavelmente sou eu quem vai dar a tampa primeiro.

Parecia abalada com aquela confissão, mas tal como ela fazia várias vezes comigo, tentei ignorar a seriedade do assunto. Nnca falavamos das fraquezas duma e doutra.

– Eu também sei no  que me estou a meter. Aliás não me estou a meter em nada. Só te queria contar porque se me vires com ele na escola não quero comentários para cima dele.

Susana suspirou como se eu lhe estivesse a pedir algo impossivel. Depois acenou afirmativamente concordando.

– Então, de que é que conversaram?

– Nada de especial. Estivemos a estudar. Ele explica bem a matéria, torna-se fascinante dita por ele.

Susana tinha o nariz ligeiramente franzido mas não comentava. Parecia querer duvidar de cada palavra que eu dizia, como se esperasse a todo o momento que eu dissesse “Achas mesmo, estou a gozar”.

Decidi que não valia a pena comentar mais nada com ela sobre Artur. Ela nunca o iria perceber. Nem eu percebia.

De todas as maneiras, tentava encontrar palavras para o que tinha visto em Artur, mas ao tentar falar ouvia-me a mim propria a baralhar-me e a juntar frases sem nexo, o que não contribuia para me manter credível em frente a Susana.

Fosse como fosse sentia que tinha feito uma grande revelação a Artur. No entanto não lhe tinha contado nada. Mas podia sentir que ele tinha percebido o que eu lhe tentara transmitir. Ou não teria?

Havia algo em Artur, no seu olhar avaliador, que me fazia supor que muito estava dito sem o dizer. Ele tinha entrado. Ele tinha observado embora de soslaio o meu pequeno mundo obscuro e talvez o tivesse mesmo comprendido. Só lhe faltava saber o porquê. Faltava nas perguntas dele a interrogação. Eram tão afirmativas…

E eu sentia-me impelida a responder.

Com Ricardo qualquer pergunta soava como um interrogatório, a algo forçado, tentando visualizar para além daquilo que eu queria transmitir.

Susana, essa nem sequer tinha reparado ainda que algo não ia bem. Mas porquê culpabilizá-la? Eu é que não estava á altura. Não podem haver nódoas para uma vida perfeita. Era tão mais facil evitá-las e viver normalmente.

Com Susana estava segura. A seu lado, não havia fraquezas, nem desabafos, nem sequer tristezas. Deviamos ser sempre fortes, impassiveies, e superiores. Afinal era por isso ue eramos populares. Era por isso que todos queriam ser como nós. Dava trabalho ser assim, mas com ela como amiga era impossivel perder o fio.

Devia pensar isso sim, na universidade, no curso, nos bailes, na roupa e em Ricardo. A minha vida era simples e perfeita e assim  tinha que continuar. E com alguma concentração parecia-me tão simples.

Susana lanchou comigo, uma salada de ovo, com fatias de ananás em lata. Queria por os trabalhos de casa em dia mas não conseguia concentrar-me.

Com apontamentos e livros de estudo em cima da mesa, Susana tinha a revista Cosmopolitan nos joelhos e uma vez por outra puxava pela revista sempre que via um escandalo de cinco em cinco paginas. O assunto não me animava, mas era sempre refrescante pensar em coisas banais.

– Não queres ir até ao centro comercial? Vi uns Parkas tão giros, agora estão na moda outra vez.

Franzi-lhe o rosto. – Com este frio não me apetece muito sair de casa. Tenho este trabalho de matemática para acabar.

-Bem eu vou ter mesmo que lá passar, manda mensagem se ele der noticias.

– O Artur não tem o meu numero de telemóvel – respondi latente.

– Estou a falar do Ricardo – murmurou Susana já de mau humor. – Não queres mesmo vir comigo?

– Não, a minha mãe já deve estar a chegar a casa. Ela gosta sempre que eu aqui esteja quando chega de alguma viagem.

– Está bem. Vemo-nos amanha na escola. – com um sorriso despediu-se, saltando energica para a tarde fria e ventosa que estava lá fora.

Com o trabalho de matemática á frente dava voltas e mais voltas mergulhada em pensamentos. Se Artur tivesse ficado, tinha sido tudo facil. No dia seguinte a primeira frase podia muito bem ter sido “ Bom dia, vamos tomar pequeno almoço?”. Mas agora dificultava tudo. Que lhe iria eu dizer quando o visse? Provavelmente nada. Talvez ele se mantivesse no grupo dele e eu no meu. Afinal o trabalho já estava pronto.

A minha mãe chegou a casa já de noite. Eu estava sentada no sofá com o telejornal a passar na televisão. Nem tinha dado pelo tempo passar.

– Trouxe comida chinesa – anunciou ela tirando umas pequenas caixinhas brancas de um saco fast food, e entregando-me os pauzinhos. O cheiro a noodles enjoou-me de imediato. No entanto comi não querendo desiludi-la. Afinal comida chinesa era das minhas preferidas.

– Como correu o baile de sexta? – perguntou-me.

– Bem, o ginásio parecia outro. E o namorado da Susana arranjou uma limousine para irmos os quatro. E estreei aquele vestido azul noite que me deste no Natal.

– Pensei que não querias sair mais com o Ricardo.

Encolhi os ombros: – O baile não é nenhum casamento. Dançamos foi divertido, nada de mais.

– Dormiste em casa da Susana?

– Dormi – e antes que a conversa fosse dali adiante sugeri ver-mos um filme, enquanto comiamos os noodles. Ao menos assim acabava o interrogatorio. A mãe devia estar esgotada da viagem porque adormeceu a meio. Silenciosamente deixei-a ficar no sofá e subi para o meu quarto.

– Só faltam resolver três problemas e e aplicar duas formulas- disse em voz alta, como fazia sempre para me motivar a estudar. Sentei-me na secretaria a acabar o trabalho. Passado longos momentos embrulhada em cálculos, adormeci tal como a minha mãe, sentada e sem dar por isso.

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